A noite de todas as sombras - Sara Farinha


Em cada novo dia adensa-se o cinzento dos céus, menos horas de luz e escasseia a claridade. Faltam as horas brilhantes, o calor abrasivo e os humores ligeiros. Carrega o espírito dos que se protegem da intempérie. Na noite de todas as sombras qualquer luz é esperança.

Um sopro de ar frio invadiu o escritório e Alina tremeu. Acomodada na poltrona verde, equilibrava um livro aberto nos joelhos, com as faces abrasadas pelo fogo vivo da lareira. Ainda assim, sentia nas costas a humidade incrustada nas paredes. Entalou a manta branca de lã entre os rins e o veludo cor de mofo criando uma nova barreira ao frio das paredes. Passou as costas da mão pela face, secando a lágrima que escorria, e voltou à página.
Da madeira soavam estalidos secos que ecoavam pela divisão, arrulhos indistintos compunham uma estranha melodia que a despertava do seu deambulo mental. Uma lamúria longínqua, seguida dum estrondo, impeliram Alina à janela.
Dezenas de pessoas rumavam de porta em porta, acompanhando grupos de crianças animadas pelos trajes e pelas recompensas. Um ritual banal… tão impossível.
Uma corrente de ar gelado percorreu-lhe o torso, abanando-a com violência. O calor da braseira nada significava para o frio que se adensava… Nem o calor a acompanhava. Os seus punhos enrolaram-se nos antebraços, espetando-se nas costelas salientes. Absorveu a imagem das crianças de todos os tamanhos até as lágrimas formarem uma barreira desfocada.
Disfarçado, o choro convulsivo de um bebé misturava-se no riso histérico das crianças. Sacudindo o curto cabelo negro, Alina fechou os sentidos ao mundo. Repetiu a litania que a trouxera para o lado dos vivos, tentando apaziguar o ardor que lhe invadia os pulmões pelas narinas.
Uma palma gelada pousou nas suas costas arrancando-lhe um tremor e uma inspiração violenta. Virou-se, nada encontrando atrás de si.
Por baixo da manga da camisola de malha, os pêlos do antebraço mexeram-se, provocando uma miríade de sensações. Sacudiu o braço e voltou a entalá-lo junto ao peito. Expirou profundamente, a névoa opaca pairando na frente do seu rosto.
Limpou as lágrimas que lhe gelavam o rosto e deixou-se cair sobre a poltrona de veludo verde, frente à réstia de calor.
Enrolou as pernas por baixo de si, cobriu-as com a manta e acariciou o livro contra o peito. Nos seus ouvidos, o choro sofrido da criança crescia, sons agudos entrecortados que ecoavam pelas divisões. Alina tapou os ouvidos com as mãos, apertou as pálpebras e murmurou com fervor, sendo imobilizada por um arrastado toque gélido na sua face.
Num pico de adrenalina levantou-se da poltrona e precipitou-se sobre o calor da lareira. Tropeçou na manta em que se enrolara e, tombando sobre o tapete, arrastou-o atrás de si, até chegar ao fogo. Aqueceu o corpo ignorando as picadas na pele, de olhos muito abertos vigiou a divisão, acompanhando o incessante ruído infantil.
Tecidos roçaram ritmicamente, deixando-a atenta à fricção dos panos. O apertão de dentes num dos seus mamilos fê-la gritar e proteger os seios com as mãos. Arrastou-se pelo chão, raspando as costas na parede. O choro esfomeado ecoou pela casa enquanto uma corrente de ar ártico lhe cobria a cara.
Contida por tecidos, de costas pregadas no estuque e com lacrimosos olhos negros, Alina descobriu o calor. Devorada por brilhantes chamas azuladas, estava pronta para enfrentar o frio invasor. Pronta para alimentar o nado-morto que a reclamava.


Se uma árvore cai na floresta… - Vitor Frazão


A floresta abafava-lhe os guinchos de terror e os protestos desesperados, enquanto esperneava sobre as folhas secas. As lágrimas escorriam o negro do eyeliner para o verde da pele tingida da Noiva de Frankenstein, iluminada pela Lua Cheia.   
- Segura-a porra! – comandou o engravatado, que usava uma máscara de Presidente Clinton. 
- Estou a tentar! – disse o rapaz vestido de zombie. – Meu, se calhar não devíamos fazer isto… E se ela fala?
- Ela não vai falar – garantiu Clinton, sacando de uma navalha de ponta e mola. Intimidada pela lâmina, a vítima parou de debater-se e tentou conter o choro. – Se sabe o que é bom vai ficar caladinha. Vai ser o nosso segredinho, não é, Noiva? – Sorrindo debaixo da máscara sussurrou-lhe ao ouvido, passando a parte romba da lâmina pelo decote. – A nossa pequena travessura de Halloween.
- Por favor, não – implorou, lavada em lágrimas e ainda lutando para o afastar, embora o medo da faca a impedisse de o fazer com muito vigor.
- Chiuu, quieta – ordenou, puxando o vestido e usando a lâmina para o desfazer numa questão de segundos. – Olha para ela, mal pode esperar.
- Vê se te despachas! – atirou um terceiro atacante, vestido de palhaço, mal podendo esperar pela sua vez, ao ver a lâmina percorrer inofensivamente o corpo nu. O largo sorriso pintado pela maquilhagem e brilho sádico dos olhos tornaram-se ainda mais horripilantes à luz do cigarro morrente.
O som metálico do cinto de Clinton a ser desapertado ecoou pela noite, por entre o choro estrangulado, enquanto Palhaço apagava a beata no tronco do freixo atrás de si, apressando-se a procurar outro paivante nas roupas coloridas. Tão ocupado estava em levar o filtro à boca e a contemplar o espectáculo, focado na expressão aterrorizada da Noiva, que não fez caso do discreto assobio de advertência que lhe ecoou na mente, nem viu um olho verde-claro surgir no tronco do freixo.
A tampa do Zippo estalou para trás e o rosto disformemente maquilhado foi iluminado pela chama, que se apagou de repente, soprada por uma rajada inesperada, antes de acender o cigarro. O macabro palhaço nem teve tempo de protestar, pois foi de imediato agarrado na boca e cintura, por mãos castanhas, enrugadas e ásperas, sendo puxado para trás, contra o freixo. Batendo no tronco não sofreu o impacto duro da madeira, mas antes algo pastoso que o tragou para as entranhas da árvore. Estrebuchado como um desalmado sentiu a madeira em redor voltar a enrijecer, comprimindo-o à medida que se afundava.
- O que?... – protestou Zombie, pondo-se de pé de um salto e fazendo Clinton voltar-se para trás. Num piscar de olhos a única coisa que sobrou da intensa luta do companheiro foi um freixo ensanguentado, de onde emergiam duas pernas sem vida, ornadas com grandes sapatos vermelhos.
Junto ao tronco, onde o sangue corria espesso e negro, estava uma figura magra e alta, vagamente feminina, parecendo surgir detrás da árvore, quando na verdade vinha de dentro dela. O luar iluminou uma tatuagem composta por nós intercruzados ao longo de toda a pele castanha e enrugada. Erguendo a cabeça, revelou um par de olhos verde-claros, por entre o emaranhado de cabelos castanhos rebeldes, cobertos com folhas mortas.
Assustado, sem entender bem o que se passava, Clinton agiu por instinto, atirando-se de navalha em punho para a figura que caminhava para ele. A melíade nem hesitou, agarrou-lhe a mão toda e esmagou-a no meio da sua, tornando-a num molhe ensanguentado de dedos partidos. O infeliz ainda não tinha parado de gritar quando ela lhe pisou o joelho, partindo-lhe a perna como um ramo seco.
Aterrorizado, enquanto a Noiva se encolhia, procurando cobrir-se desajeitadamente com o vestido rasgado, Zombie virou as costas e tentou fugir, só que tropeçou numa raiz, que logo lhe rodeou o tornozelo, prendendo-o ao solo. Foi obrigado a ver enquanto uma choramingas versão do seu amigo era agarrado pela ninfa arbórea e uma vara emergia do solo, empalando-o. Clinton contorceu-se com todas as forças, mas nada pôde fazer à medida que o pau entrava pelo ânus, fazendo o caminho pelo interior e centro do corpo, evitando os órgãos vitais, e emergia pela boca, altura em que começou a desenvolver ramos e folhas, até se converter num forte, embora delgado, freixo de copa frondosa.
Terminada a árvore revestida com um humano moribundo, a criatura voltou-se para Zombie.
- Não! Não, não, não… Por favor – implorou, puxando pela raiz que o prendia com toda a força e depois esgravatando o solo tentando rastejar para longe, à medida que a ninfa se aproximava, lentamente. – Eu não queria. Foram ele que me obrigaram. Peço desculpa. Juro que não volto a… Espera, por favor. – Ela estava sobre ele. Raízes erguiam-se da terra húmida, enrolando-se aos membros e prendendo-o ao solo. – Eu não conto a ninguém. Prometo! Guardo segredo!
Centenas de finas varas penetraram todas as partes do corpo, excepto a cabeça, evitando pontos vitais. A dor foi tão intensa que ele nem conseguiu gritar ou sequer reagir quando a melíade lhe levou a mão à cara, perfurando-lhe os olhos e arrancando-lhe a fronte do crânio.
Mais calma, largou os fragmentos ensanguentado do rosto no solo da floresta, fazendo as varas dentro de Zombie expandirem-se, unirem-se em centenas de ramificações e puxarem-no para debaixo de terra.
- Obrigada – agradeceu Noiva, lavada em lágrimas, de joelhos no chão, abraçando-se como se quisesse proteger-se do mundo. Estava aterrorizada, mas satisfeita por aquela espécie de anjo vingativo ter intervindo, dando àqueles filhos da puta o castigo que mereciam. – Muito obrigada.
À volta de ambas, as provas da luta desapareciam. Palhaço e todos os seus restos eram absorvidos pelo freixo original e a árvore que brotara em segundo regressava ao solo, com Clinton ainda vivo nela.
Noiva ergueu os olhos para a figura que tapava o luar, vendo-a debruçar-se e agarrar-lhe em ambos os lados da cabeça, com carinho. Os seus olhos verdes eram meigos e tranquilizantes, como uma brisa primaveril, reconfortantes como um abraço materno.
Uma única palavra soou telepaticamente na mente da humana.
“Desculpa.”
Noiva morreu instantaneamente e o seu corpo foi tragado com delicadeza pelo solo da floresta. Não tivera qualquer prazer em matá-la e, de regresso ao freixo, talvez até soltasse uma ou duas lágrimas por a falta de paciência com os profanadores ter custado a vida a uma inocente, todavia, o segredo da sua existência precisava de ser mantido.       


Bruxaria - Pedro Pereira


Na sala mal iluminada, a fraca luz das candeias colocadas no interior das abóboras projetava sombras de contornos estranhos nas paredes, dando um ar um tanto ou quanto bizarro ao local.
Nélia acendeu as velas em redor do velho tabuleiro de Ouija e colocou o copo no centro.
– Está tudo pronto – declarou.
– Têm a certeza de que querem fazer isto? – questionou Luciana com o nervosismo latente na voz.
– O que se passa Lú? Estás com medo que os teus pais descubram? – perguntou Rita.
– Deixa-te de coisas! Não sejas cortes! – protestou Carina.
– Não te preocupes, Lú. Isto é completamente seguro – disse Nélia tentado conter o riso. Luciana sempre fora a mais medrosa do grupo. – Coloquem todas um dedo no copo.
As jovens seguiram as instruções da amiga. Luciana hesitou um pouco antes de imitar as companheiras.
– E agora? – questionou Carina.
– Agora vamos ver se há espíritos por aqui… – explicou Nélia. – Está algum espírito presente que queira contactar connosco?
Lentamente, o copo começou a mover-se. O som do vidro a deslizar no tabuleiro de madeira preencheu o silêncio da sala. Luciana não pôde deixar de sentir um aperto na garanta quando o copo parou em cima do “sim” no tabuleiro.
– Fixe! – comentou Rita.
– Quem vai morrer hoje? – perguntou Nélia, enquanto trocava olhares comprometidos com Rita e Carina.
O copo moveu-se mais uma vez no tabuleiro, deslocando-se entre as várias letras enquanto a mensagem se formava.
Uma gota de suor escorreu pelo rosto de Luciana. Com a respiração acelerada, a jovem sentia o corpo a tremer cada vez que o copo se movimentava.
Lentamente o copo deslocou-se para a letra L.
O aperto que Luciana sentia na garganta ficou mais forte, e a sala pareceu ficar subitamente muito mais quente, porém ela sentia frio.
Copo estava novamente em movimento. O som do arranhar na madeira parecia agora aterrador. Avançou de seguida para o U.
– Lú – sussurrou Carina.
Luciana deixou escapar um grito histérico e largou o copo, afastando-se do tabuleiro.
As amigas desataram a rir enquanto Luciana olhava para elas com um ar pálido e assustado.
– Não teve piada! Não teve piada nenhuma!
Os protestos da amiga serviram apenas aumentar o riso das adolescentes. Rita já sentia as lágrimas a virem-lhe aos olhos de tanto rir.
As risadas foram substituídas por gritos quando uma força invisível atirou Carina pelo ar, lançando-a contra uma parede.
Atordoada pela pancada, a jovem levantou-se com algum esforço, mas foi de imediato atingida por uma força invisível que a prendeu contra a parede. Sem perceber o que se passava, Carina gritou, vítima de uma dor lancinante nas têmporas. Por entre os berros de dor, um líquido espesso e morno começou a escorrer-lhe pelo rosto. Incapaz de se mover, só se apercebeu que era sangue quando lhe alcançou os lábios.
Formou-se uma linha de sangue entre as têmporas de Carina, circundando-lhe por completo a cabeça. Lentamente surgiu uma terceira linha que dividia o crânio em dois na vertical, fazendo deslizar vagarosamente as partes do crânio acima das têmporas, colocando a massa encefálica exposta. Os gritos de dor de Carina eram agonizantes, confundindo-se apenas com os gritos de horror das amigas, que em pânico tentaram fugir da sala.
O velho bengaleiro de madeira sobrevoou a sala em direção às jovens em fuga, trespassando Luciana no peito, que caiu ao chão com espasmos de dor enquanto dava o seu último fôlego.
Nélia e Rita correram para a porta do apartamento, enquanto os seus gritos de aflição preenchiam a casa.
– Está trancada! – exclamou Nélia em pânico.
Num dos cantos da sala, Carina deixava escapar os seus últimos gemidos de dor, antes de se entregar à morte.
– Eu vou morrer! – choramingava Rita por entre as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto.
– Pois vais, pequenina – respondeu Nélia.
Nélia enterrou as unhas abaixo das costelas de Rita, que a olhava agora com uma expressão de pavor e descrença no rosto.
Remexendo a mão, Nélia puxou o braço para trás e arrancou o coração de Rita, cujo corpo caiu inerte no chão.
Com calma, Nélia levou o coração aos lábios e lambeu o sangue que o cobria. Olhando para o coração sorriu. Fora tudo tão fácil…
Movendo-se com determinação por entre os corpos, pegou numa pequena caixa de metal escondida por baixo da mesa e colocou o coração no seu interior. De seguida, aproximou-se do corpo de Carina, de onde cuidadosamente retirou a massa encefálica também para o interior da caixa. Por fim, dirigiu-se para junto do sofá encarnado, onde jazia o corpo de Luciana e com as unhas, arrancou os olhos azuis da fronte sem vida.
Nélia guardou os seus preciosos bens no seu pequeno cofre de metal, pegou no seu tabuleiro de Ouija e abandonou o apartamento. A bruxa tinha reunido os últimos ingredientes para a sua poção da juventude. Agora iria conseguir manter aquele aspeto jovem por mais algumas décadas…


Os Kravyads 2/7 – Segredos de família – Vitor Frazão


- Anath é tu? – inquiriu, em hindu, uma voz feminina, vinda detrás de uma lascada porta de madeira.
- Sim, mãe – respondeu ela, em português, tirando o longo e grosso casaco preto que envergava, pendurando-o no cabide junto à porta.
Apesar da estranheza da situação lhe ter estragado a fantasia, uma parte de Luís não conseguiu evitar deslizar de volta para a ilusão, ao ver as curvilíneas formas de Ana, favorecidas por uma camisola de lã vermelha e jeans justas. O simples poder da luxúria talvez tivesse sido suficiente para cativá-lo de novo, se não fosse pela súbita e radical mudança de atitude da rapariga. Embora mantivesse uma beleza quase sobrenatural, a simpática, tímida e ligeiramente travessa jovem que conhecera e que o atraíra ali, perdera todo o calor, tornando-se numa mulher arrogante e fria, que nem parecia interessada em olhar para ele. Na verdade, aparentava dar-lhe tanta importância como a uma minúscula poça de lama, limitando a sentar-se, numa cadeira junto à entrada, com uma mão sobre as pernas cruzadas e a outra a apoiar a cabeça, como se achasse toda a situação incrivelmente enfadonha.    
- Não tiveste pressa nenhuma… É quase meia-noite! – criticou a mulher mais velha, em português, entrando na sala, enquanto limpava as mãos ao avental branco que usava por cima de uma camisola de lã azul-escura.
- Isto é alguma piada? – perguntou Luís, cada vez mais confuso. – É a tua mãe? És adoptada?
- Não – respondeu Anath, sem sequer olhar para ele, usando um tom de voz que dava a entender que, por vezes, desejava sê-lo.
 O choque do jovem perante a confirmação do laço sanguíneo não se devia tanto a Ana ser alta e esbelta, com cabelos louros e olhos cinzentos e a mãe baixa e forte, com cabelos pretos e olhos castanhos, mas antes, ao facto da pele branca como leite da filha parecer indicar origens escandinavas, enquanto a progenitora era indubitavelmente do subcontinente indiano. Embora Luís nada entendesse de genética, parecia-lhe improvável, senão impossível, aquelas duas serem mãe e filha, por mais nórdico que fosse o pai, algo acentuado pela total ausência de feições similares.     
- Não acredito que saíste assim à rua – reprovou a mãe, acabando de limpar as mãos ao avental manchado de sangue. – Isso são preparos?
- Mãe, poupa-me – cuspiu Anath, farta de ouvir aquele sermão cada vez que saía.
- O que se passa aqui? – quis saber Luís. – Esta mulher, não pode ser tua mãe…
- Às vezes gostava de não ser, sempre teria menos desgostos – sentenciou Kunti, abanando a cabeça em sinal de desapontamento, enquanto se aproximava. – Mas deixa ver o que trouxeste…
- Ei, minha senhora! O que?... – protestou Luís, quando a mulher esticou os braços e começou a mexer-lhe na cara.
Parte do jovem pensou em ficar quieto e aguentar o escrutínio, não sabendo se aquilo seria um qualquer hábito cultural que desconhecia, porém, o seu primeiro instinto foi protestar. Pensando que talvez estivesse a exagerar e não querendo insultar ninguém, Luís olhou para Ana, na esperança de obter alguma pista sobre como devia agir, só que esta permaneceu indiferente a toda a interacção, demonstrando-se mais preocupada em certificar-se que a camisola que usava se mantinha impecável, do que com o resultado do estranho ritual.
Continuando sem entender o que se passava, enquanto a mãe de Ana lhe apalpava o rosto, braços e tronco, Luís notou que algo mudara. Inicialmente, tudo parecera normal, porém, com o aproximar da anfitriã e à medida que o escrutínio desta se intensificara, o jovem começou a sentir um invulgar e pungente cheiro, como se alguém tivesse acabado de esquartejar um animal em decomposição, surgir do nada, tornando-se cada vez mais forte. Estranhamente esse odor, que ia e vinha, sendo difícil detectar se não estivesse atento, provinha da mãe de Ana, uma mulher que à primeira impressão parecera, na verdade, completamente desprovida de aroma. Mais invulgar ainda era o facto desse inconstante odor parecer estender a sua mutável influência ao ambiente em redor. Ocasionalmente, Luís pensava ver parte do velho, asseado e acolhedor apartamento que o rodeava tornar-se em algo mais sombrio, sujo e sinistro, como se estivesse a observá-lo através de uma cortina esburacada, abanada pela brisa. Não compreendendo o que percepcionava e receando ter bebido mais do que julgara, o jovem depressa descartou tudo como uma ilusão de óptica influenciada pela parca iluminação do hall de entrada, todavia, permaneceu perturbado.

- Não está mal... – decretou a mulher mais velha, avaliando o jovem como se ele fosse um animal de feira. – Um pouco magrinho, mas… – comentou, pondo-lhe uma mão na nuca e puxando-o para a frente, de modo a olhá-lo nos olhos. – Sim… – acrescentou, hesitando por momentos, antes de rasgar um largo sorriso, aparentemente satisfeita com o que vira. – Fizeste bem Anath, foi uma boa escolha. Sentirão a falta deste. Dará um óptimo sacrifício.







Os Kravyads 1/7 – Luxúria – Vitor Frazão


Os lábios quentes e húmidos dela eram sumarentos como cerejas maduras e a língua suave como seda. Mesmo embotada pelo desejo, a mente de Luís era assolada por uma tempestade de pensamentos, incapaz de simplesmente se deixar levar pelo prazer do momento.
Quando saíra de casa, no início da noite, e se dirigira ao tasco para beber uns copos com os amigos, os planos do jovem e tímido estudante universitário eram modestos: relaxar um bocado, depois de um dia inteiro a “marrar”, abstraindo-se, por algumas horas, dos exames e da pressão de fazer jus às expectativas da família, que tanto sacrificara para o pôr a estudar em Coimbra, e, no máximo, se tivesse sorte, conseguir chegar a algum lado com Madalena. Nunca imaginara que deixaria passar essa oportunidade para dar por si no corredor de um prédio estranho, prestes a ir para a cama com uma bela e misteriosa desconhecida.
Mal acreditava na sua sorte, ao ponto de desconfiar tratar-se de uma tramóia maldosa. Luís não se achava feio, porém, também sabia que não era nenhuma estampa, não tendo nada que o distinguisse dos demais, muito pelo contrário, se precisasse de o fazer, definir-se-ia como banal. Por outro lado, aquela que o engatara era, pura e simplesmente, excepcional. Seria tudo aquilo, uma partida ou alucinação? Desde quando é que uma mulher como ela ligava puto a um tipo como ele?
Ana parecia saída das suas mais loucas fantasias, quase demasiado bela para ser real. Olhos cinzentos, guardados por longas pestanas e sobrancelhas finas; compridos e lisos cabelos louros, que desciam até meio das costas; lábios finos e sumarentos que ocasionalmente se rasgavam num singelo e desarmante sorriso, misto de malícia e timidez; corpo delgado, mas voluptuoso, cujas formas, mesmo sob as grossas roupas de Inverno, faziam virar cabeças e um rosto que transmitia calor, alegria e um toque de travessura. A mistura de femme fatal e “rapariguinha da porta ao lado”, fazia-a bela e sedutora ao ponto de a sua presença ser intimidante, porém, a atitude descontraída e simpática tornava-a acessível, mesmo acolhedora. Era o tipo de mulher que podia ter qualquer um, o que levava um desconfiado, embora satisfeito, Luís a interrogar-se: “Porquê eu?”
Quando finalmente chegaram à porta do apartamento de Ana e esta interrompeu o beijo, afastando-se ligeiramente para levar a chave à fechadura, Luís estava capaz de jurar que sentira o mundo tornar-se mais frio e escuro. O toque dela, a sua respiração na dele, eram a luz e o calor que o puxavam de um universo cinzento e cruel, como uma droga que atenuava a realidade. Não queria estar longe dela, não podia estar, a ideia de tentá-lo enchia-o de um vazio angustiante, que lhe oprimia o coração, como uma mão gelada.
 Vozes dentro do apartamento arrancaram-no, momentaneamente, da hipnótica fantasia criada pela luxúria.
- Tens colegas de casa?
- Só os meus pais – respondeu ela, abrindo a porta.
Foi como se lhe tivessem enfiado um balde de água fria pela cabeça abaixo. O choque acordou Luís para a realidade, levando-o a interrogar-se que espécie de piada cruel seria aquela? Quem é que engatava um tipo qualquer e o trazia para conhecer os pais?
- Mas o que?... Eu… Mas… – foram as únicas palavras que conseguiu articular, enquanto Ana o puxava suavemente para dentro do apartamento.

- Não te preocupes – pediu ela, lançando um sorriso perante o qual Luís não conseguiu conjurar uma razão para se recusar a segui-la.






Filho de peixe sabe nadar 4/4 - Carlos Silva

                Uma procissão de vassalos prestava homenagem ao rei Sigmundo, que exalava os últimos folgos de vida no seu leito. A rainha Guinei, sentada no trono, escondia as lágrimas dos súbditos. Não era maior a tristeza de ver o seu marido a morrer que a de saber que ainda não lhe fora capaz de dar herdeiros. Já experimentara centena de poções e feitiços, sem que nenhum lhe desse um ventre capaz de gerar uma criança normal. Todas as noites se remoía em culpa de ter sido fértil para o elfo, mas não o conseguir para o legítimo marido. O mago ainda a tentara convencer de que a falta de gestação era falha de Sigmundo, mas Guinei exortara-o a calar-se e a não duvidar da virilidade do seu rei. No entanto, a cada dia que se passava, a dúvida crescia a compasso com o seu desespero. Teria de casar de novo. Como filha primogénita do falecido rei de Lindura tinha o dever de dar um filho ao seu povo.
                Um descomunal crocitar ecoou pelo salão, seguido da entrada de um enorme vulto negro de asas abertas que, quando tocou no chão, se começou a transformar na conhecida figura do mago da corte. Com um gesto de mão o rei dispensou todos os vassalos e até mesmo a sua rainha. O amanita abeirou-se da cama do monarca, deixando o meio-sangue no meio do salão. Sigmundo agarrou a manga de Hiram e puxou-o para mais perto de si.
                - Falhaste, mago – gemeu com esforço. – Prometeste que darias um príncipe ao reino ainda antes do meu último dia. Que me trazes tu? Um elfo? – Disse, apontando para o rapaz de cabelo verde que observava as paredes de pedra, estranhando-lhes a falta de vida.
                - Sabeis bem que o meu voto de lealdade está enraizado em algo muito mais poderoso do que qualquer ética. Segui à regra o que me pedistes: Aqui tendes um filho, nascido no ventre de Guinei, educado nas finas artes da exigente sociedade élfica e nos saberes reais por um mago experiente – disse, apontando para o príncipe Volter.
                O rosto do rei encolerizou-se, tornando-se vermelho, fazendo as veias sobressair como as raízes de uma árvore antiga. Um ataque de tosse que o levou às lágrimas intercalou cada palavra gritada:
                - Nunca! Nunca compactuarei com tal coisa! O reino precisa de um herdeiro, mas eu também preciso de um filho meu! Nunca aceitarei que ele use o escudo deste país.
                - O meu voto de lealdade é para com o reino, não para com o rei. O concílio dos magos nunca exigiria outra coisa de um dos seus. Aqui tendes um rapaz que irá dar um excelente rei sem que Lindura tenha de passar por uma crise de sucessão. Se não o aceita, pior para si, ninguém o ouvirá depois de morto e o sangue real que corre nas veias de Volter passará em todos os testes.
                - Como te atreves, insolente! Nem um mago sabe quando chega a derradeira hora de um homem!
                O sorriso de Hiram rasgou-se, exibindo as duas fileiras cerradas de pequenos dentes pontiagudos.
                - Oh, meu bom rei, tendes toda a razão. Porém, um bom mago sabe quanto tempo demora cada um dos seus venenos a trazer a morte. – O mago consultou o horológio que trazia na túnica. - O da rainha Guinei deve estar mesmo agora a surtir efeito e o seu não deve tardar.
                Resignado, engolindo o seu orgulho e as lágrimas que lhe escorriam pela barba, o rei Sigmundo deixou-se morrer serenamente perante o olhar frio do mago e do Príncipe Volter. O plano arquitectado pelo amanita corria ágil e preciso, como os mecanismos do seu horológio. Só faltava uma ponta por atar… Hiram olhou por cima do ombro e ali estava ela! Vento que Anda entrava pela janela, sob a forma de um avejo que certamente enganara para lhe roubar a essência. Tocando no chão, desfez a mentira e tomou a forma de elfo, segurando um avejo morto entre os dedos que depressa atirou para o chão com desprezo.
                - Parabéns – felicitou, batendo palmas sem entusiasmo - Um plano digno de um elfo! Confesso que não esperava nada assim. Não sei…Talvez pela sua simplicidade…De qualquer modo, foste tão desleixado na análise das leis que nem te ocorreu que tendo eu partilhado o leito com a rainha e dando-lhe o filho com que continuar a linhagem faz de mim o legítimo rei regente em caso do infortúnio que acaba de acontecer.
                - Não te ocorreu pensar porque foste tu o escolhido para ser o pai desta criança? Soberba! Todos os elfos têm esse terrível defeito, mas tu ultrapassa-los a todos. Sabia que não resistirias em reclamar o teu lugar por direito, colocando-te exactamente no lugar em que eu te quero.
                - E que lugar é esse, reles amanita?
                - Exactamente aí, onde estás, trespassado pela espada do filho que acaba de ver os pais assassinados.
                Dito isto uma lâmina irrompeu pelo ventre de Vento que Anda, revelando a presença até lá oculta por artes da raça do meio-sangue. Ao ouvir o grito do elfo, a guarda irrompeu pelo salão de lanças em punho, prontos a punir qualquer ameaça ao rei. No entanto, tinham chegado tarde de mais, informou-lhes o mago, o elfo conseguira matar os monarcas de Lindura. Felizmente, o filho há muito perdido tinha tornado a casa, morto o regicida, e estava pronto para ocupar o trono.
Rei morto, rei posto.
O mago bateu-lhe nas costas amigavelmente, segredando-lhe ao ouvido.
- Ides agora fazer o teste do sangue, perante o túmulo dos seus antepassados e todos os nobres da corte. Não vos preocupeis, irá correr tudo da melhor forma.
- Não vindes comigo, fiel amigo? Presenciar o momento eu que sou aclamado como real herdeiro da coroa?
- Não, tenho de ir libertar Ruão da sua prisão élfica.
O choque estampou-se na cara de Volter.
- Mentiste-me! Dissestes que já o tinhas liberto!
- Meu príncipe, até parece que não reconheceis o valor de uma pequena mentira em favor de um bem maior!


Gosma Literária - Carlos Silva


- Estava à espera de algo diferente, Professor Gonzaga. – Disse Marco Freitas, acariciando a pequena máquina que tinha à sua frente.
 - Não se deixe enganar pelo aspecto, esta maravilha da ciência vai mudar o modo como a leitura é vista no Mundo! Melhor ainda, vai impulsionar a sua carreira de escritor para níveis nunca antes vistos!
- Pode mostrar-me como funciona?
O professor anuiu e pegou num exemplar da Mensagem de Fernando Pessoa e colocou-o no prato de alimentação da máquina. Ao recolher do prato, centenas de luzinhas começaram a piscar e ruídos mecânicos a fazerem-se ouvir. No pequeno monitor, um gráfico tomava forma. Por fim, o bulício parou e uma válvula do lado direito abriu-se e deixou escorrer lentamente uma gosma azulada semitransparente para um pequeno prato. Cheirava a mar e a manhãs de nevoeiro.
- No interior da máquina, o livro é folheado e lido e, graças a um complexo algoritmo matemático, o sentido e estética das palavras é percebido. Com essa informação, consigo determinar que substâncias devem ser misturadas de modo a transmitir todo o leque de sensações que o livro transmite ao leitor.
Marco abanou a cabeça em confusão e encarou de novo o investigador.
- Está a afirmar que, ao comer essa gosma irei sentir o mesmo que sentiria ao ler o livro?
- Exactamente! Dentro de alguns anos, ler livros será uma coisa do passado. Bastará meter a gosma na boca e toda uma miríade de sensações invadirá o cérebro do ex-leitor.
- Fantástico! – Coçou o queixo. – No entanto, pelo que percebi, vai precisar de escritores à mesma.
- É verdade, mas não serão necessários bons escritores, apenas pessoas que pareçam bons escritores. O conteúdo não será de todo importante. Basta por exemplo combinar umas antíteses, umas metáforas sem sentido, umas inversões da sintaxe comum e umas ideias feitas que ressoem no desejo das pessoas que a gosma literária terá um sabor adocicado e saciante. O único defeito desta estratégia é que, quando o leitor tentar degustar com mais cuidado a gosma, vai notar que ela tem um sabor demasiado artificial e muito pouca consistência.
O investigador inseriu uma colectânea de contos de quatrocentos e cinquenta e três autores completamente desconhecidos e máquina converteu em gosma. Era um líquido baço, sem consistência, por vezes pontilhado de pequenas gotas que pareciam saborosíssimas,  mas que rapidamente se diluíam no resto e desapareciam.
- Estou a ver… Talvez se possa contornar esse facto com utilização abundante de anáforas. O cérebro humano adora repetição de padrões.
- Você vai ser um óptimo produtor de gosma literária! De facto, as anáforas causam uma sensação de cócegas no céu-da-boca e fundo da garganta que distrai a maior parte dos ex-leitores da falta de consistência.
- Compreendo. Basta-me apenas alguns truques baratos de estética para obter um bom resultado.
- Não, não, de todo! Tem também de apostar nas temáticas que ofereçam o melhor sabor. Por exemplo, leves angústias pessoais fúteis dão um leve sabor avinagrado muito apreciado por leitores que se consideram intelectuais. Mas tem de ter cuidado com a dose! No outro dia, transformei em gosma um livro de Musil e tive dificuldade em comê-la até ao fim. Sugiro que prove um desses romances femininos que nascem como cogumelos nas livrarias. São dulcíssimos, sem dúvida alguma, mas a tentativa desesperada das autoras de introduzir tons ácidos, acaba por criar um falso sabor a vinagre balsâmico.
Marco Freitas já sonhava com mil e uma histórias que poderia criar com a premissa básica do amor. Um suceder de aproximações e afastamentos sem fim nem nexo que produziria gosma literária que agradaria qualquer palato feminino
- Podia tentar enveredar por esse caminho… - disse pensativo. – O das histórias de amor.
- Jamais! Não tente retratar amor por meio da literatura. É extremamente frustrante conseguir captar a verdadeira essência, vai desperdiçar imenso tempo e imensa gosma para o lixo antes de conseguir um bom produto final. Aposte antes noutro tipo de narrativas que pareçam – Fez um especial enfâse em “pareçam. – amor, mas que sejam apenas sentimentos de posse, fascínio ou desejo sexual. Aliás, aposte no sexo. Sexo é sempre bom. Toda a gente gosta de uma gosma literária pejada de sexo. – Introduziu um exemplar de Teleny e saiu uma gosma vermelha cristalina de cheiro pungente. Cheirou-a deliciado e deglutiu-a num só trago. – Este livro dá um sabor picante e a especiarias fantástico! Mesmo que a descrição do acto seja péssima e os sabores complexos não surjam de todo, tem sempre garantido uma sensação de frémito nos órgãos sexuais que compensa tudo o resto.
- Tem razão, esta máquina vai mudar a literatura para sempre.
- Meu amigo, a literatura não é para aqui chamada. – Admoestou severamente. - Qualquer tentativa de a inserir nesta máquina dá uma gosma indigesta, que tem como principal efeito colocar os ex-leitores a cismar sobre o Mundo. Não, esta máquina só serve para textos do calibre dos seus!
Marco sorriu largamente, pensado nas imensas oportunidades de negócio que aquela invenção lhe trazia. Por uma certa quantia de dinheiro, poderia até ensinar as pessoas a fazer as suas próprias gosmas literárias. Toda a gente gosta de vangloriar os objectos culinários que são capazes de preparar. O instagram e milhares de posts no facebook são prova disso mesmo. Quanto dinheiro estaria o povo disposto a pagar pelo status de fazer gosmas literárias, mesmo que nunca chegassem aos supermercados? Revirou os olhos de prazer orgástico ao pensar na sua conta bancária a encher.
- Professor Gonzaga, estou convencido. Quanto quer pela máquina?


Triste e Leda Madrugada - Carina Portugal


O canto das aves imiscuía-se no raiar do Sol e eu, sentada à beira do precipício, observava como o céu se matizava com o passar dos minutos. Era uma visão digna dos deuses.
– Em que pensas?
– Não tenho a certeza. Acho que penso em nada – respondi, cruzando as pernas. – Penso em nada para poder sentir tudo. Faz sentido?
Ao meu lado, a bela jovem abanou a cabeça. Os seus cabelos eram de puro ouro, revoltos e reluzentes. O rosto revelava-se uma mescla estranha de expressões que se harmonizavam – parecia simultaneamente triste e alegre. Mas, para mim, isso também não fazia sentido.
– Então, diz-me o que pensas – pedi, com um sorriso curioso.
Ela hesitou um pouco, levando um dedo ao queixo enquanto meditava.
– Penso que não penso. Penso que pensar destrói, penso que te estou a destruir ao pensar, por isso não vou pensar mais – respondeu, com um sorriso demasiado feliz para se coadunar com as suas palavras. – Se pensar demasiado, a vida morrerá nesse pensar.
Fiz uma careta de desgosto. As reflexões dela criavam-me nós na mente, e depois tinha de passar todo o dia a tentar desfazê-los. Era sempre assim.
– Mas, se não pensares de todo, a vida não chega a nascer sequer – notei, perguntando-me o que iria ela responder àquilo.
Vi-a ficar novamente pensativa. Quanto mais pensava, mais os cabelos cresciam, alargando-se pela superfície em seu redor, mergulhando no penhasco, sem medo. Quando senti que uma madeixa me tocou a mão, estremeci por dentro, sofrendo a sua queimadura na pele e na alma.
– Porque me fazes perguntas tão difíceis? Já disse que não quero pensar. Estou a magoar-te – concluiu, sem deixar de sorrir, mas ainda assim com tristeza no olhar.
Encolhi os ombros. Não era nada de novo, só significava que estava na minha hora de recolher, que precisava de me afastar. Mas só depois de sentir um pouco mais daquela dor. Queria que ela pensasse. Queria uma resposta. Insistiria até à eternidade se fosse necessário.
– Não faz mal. Continua a pensar – pedi simplesmente, observando-a. Mas até olhar para ela já me magoava.
E ela pensou, pensou até os seus cabelos se perderem no horizonte, pensou até eu sentir o corpo tremer. Quando dei conta de que já não aguentaria mais aquele tormento, fechei os olhos.
– Volto amanhã e esperar-te-ei aqui, à mesma hora. Não faltes e traz-me a tua resposta – volvi, deixando-me cair do penhasco com um mero impulso, como se se tratasse da brisa do vento. – Não faltes, Madrugada.
Senti o seu olhar, até me perder de vista na escuridão daquele abismo.

– Até amanhã, Noite – chegaram as suas palavras até mim, antes de me sentir a adormecer. Ela já pensara o suficiente para que a vida nascesse e seguisse o seu trilho sinuoso.


Filho de peixe sabe nadar 3/4 - Carlos Silva


Os anos passaram e o pequeno príncipe cresceu forte e saudável, para admiração dos restantes elfos do reino que esperavam que um meio-sangue ao cuidado de um javardo morresse ainda antes de começar a falar. Não só sobrevivera como se versara nos saberes élficos, integrando-se quanto possível na sociedade, de tal modo que apenas as feições e os olhos castanhos o podiam denunciar. Na escola o seu nome era Olhos de Carvalho, para que nunca ninguém se esquecesse que aquele rapaz era diferente e merecia ser tratado de modo diferente. Olhos de Carvalho sentia-se diferente. Embora tolerassem a sua presença, elogiassem esporadicamente os seus avanços nos estudos, o meio-sangue vivia segregado da vida social, não lhe sendo autorizado a partilhar o espaço de refeições com o seu pai, ou a participar nos eventos sobre o cepo. Nessas noites solitárias, Ruão ensinava-lhe o que estava no coração de um javardo e quão frios e distantes os elfos conseguiam ser uns dos outros e da natureza. De vez em quando, Olhos de Carvalho recebia a visita velada de uma estranha criatura envolta em panos negros e conversas estranhas. À medida que foi crescendo, foi valorizando as parcas visitas, encontrando cada vez maior sentido nas palavras sibiladas pela criatura que não o chamava de Olhos de Carvalho mas de Príncipe Volter.
                Ao contrário dos seus tios da sua idade, o décimo terceiro aniversário, data a partir do qual era considerado adulto, não foi pautado pela alegria da festa que os elfos convocam em honra das crianças que o deixavam de ser. Olhos de Carvalho não sentira a idade a garantir o acesso aos círculos de decisão, mas sim o assinar de uma ordem de expulsão informal do quilongue onde as crias viviam. Não lhe fora sequer oferecido um escravo, como seria de esperar. Nessa noite, ao chegar à casota de Ruão, onde o pai adoptivo preparara um ninho de farrapos para o meio-sangue se aninhar, deixou o choro correr livremente, carpindo a desgraça de nem ter direito a uma casota só para ele.
                A horas incertas da madrugada Ruão acordou Olhos de Carvalho. Vento que Anda chamara-o à sua presença imediatamente. De olhos inchados, o meio-sangue vestiu o melhor fato que tinha e apressou-se a ir de encontro ao seu pai. Este esperava-o na biblioteca, sentado no cadeirão de leitura virado para a janela, folheado distraidamente um livro de poesia. A sua posição era, como sempre, altiva, mas Olhos de Carvalho conseguia sentir-lhe o nervosismo que lhe cerrava os dentes e tremia as mãos. Assim que fez anunciar a sua presença com um leve pigarrear, Vento que Anda chamou-o para mais perto com um aceno. A distância parecia infinita, mas nem por isso o meio-sangue apressou o passo. A cultura élfica exigia que tentasse saber o máximo concedendo o mínimo.
                - Queria dar-te os parabéns, filho – principiou por dizer, transparecendo uma empatia fingida no étimo que lhe dirigira. – Para o bem ou para o mal, és um adulto. Já pensaste no que queres fazer da tua vida?
                Olhos de Carvalho estava agora a escassos metros do cadeirão.
                - Não pensei nisso, meu pai. Aliás, se não fosse Ruão a lembrar-mo, poderia até ter esquecido que este era o meu décimo terceiro aniversário. – O lábio superior do elfo tremeu milimetricamente com a provocação. Um gesto que passaria despercebido para qualquer outra raça, mas não para o meio-sangue. Passou ao ataque. – Porque me chamou aqui a estas horas? Que me quer dizer que mais nenhum dos seus irmãos possa ouvir?
                Vento que Anda censurou-se por subestimar o filho. Os quilongues não tinham portas trancadas sem ser as do exterior, pelo que uma conversa confidencial teria de tomar lugar a horas pouco comuns ou em locais mais esquecidos. O rapaz tinha sido bem educado e estava tão alerta quando era preciso numa sociedade como aquela. Teria de o destabilizar se quisesse atingir o seu objectivo.
- Sabes, filho…Tu só estás vivo por causa de uma dívida que tenho para com o mago que te visita. Se não fosse por ele, nem a tua mãe teria deixado que nasceste. Nunca perguntaste, mas sei que queres saber quem é a tua mãe, não é? Se algum dia fores até ao reino de Lindura, pergunta pela Negreta, a prostituta perneta. – lançou uma gargalhada de escárnio. – Sabes o que mais me alegra? É que apenas prometi ao mago que te mantinha vivo até chegares a adulto.
Ainda não tinha acabado a última palavra já uma espada surgira na sua mão, em direcção ao pescoço do meio-sangue que por pouco se conseguiu desviar. Olhos de Carvalho pensou em fugir, mas Vento que Anda já lhe tinha cortado o caminho para a porta e a janela era demasiado alta. Desembainhou um punhal oculto nas vestes, à boa moda élfica, e empunhou-o em direcção de seu pai. Os golpes de espada caíram sobre si com uma velocidade com que nenhum professor de esgrima o testara, atirando o meio-sangue para o chão ofegante. Com um golpe de rins, voltou à posição vertical, mas nem por isso recuperou vantagem no combate. Saltou por cima de uma mesa de leitura e pontapeou os tomos na direcção do seu atacante que não teve defesa senão encolher-se. Aproveitando o espaço de manobra, Olhos de Carvalho golpeou o ventre do elfo que se desviou a tempo de apenas ficar com uma ferida superficial. Os olhos verdes irradiavam ódio.
- Nunca esperei que fosses tão bom espadachim, Carvalho! – cuspiu para o chão e estalou os dedos. – Mas nem por um momento penses que vou dar ao mago aquilo que ele quer.
Atrás de Olhos de Carvalho surgiu um segundo elfo, que certamente se esgueirara durante a peleja sem ser visto. Nas suas mãos trazia uma besta que largou o seu virote na direcção do meio-sangue, que assistiu com horror um ataque que não podia evitar. Durante esses mesmos instantes, algo de estranho aconteceu a tudo, como se a própria essência do ar tivesse sido corrompida. O virote abrandou a sua velocidade, desfazendo-se em nada, as prateleiras começaram a vibrar, fazendo cair os seus livros e a própria luz solar vacilou a entrar na biblioteca. Vindo de nenhures surgiu Hiram, envolto em negro, de braços esticados e os olhos tão abertos que pareciam ter duplicado o seu grande tamanho. Com um olhar atirou o elfo da besta para longe, fazendo-o deslizar ao longo do corredor que saía da biblioteca como que puxado por uma mão invisível. A trama do mundo voltou a tremer com o movimento das mãos do mago e um projéctil de luz embateu contra Vento que Anda, fazendo-o largar a espada.
- Irei transformar-me para o levar daqui. Agarre-se às minhas costas e conduza-me na direcção das montanhas. Chegando a um castelo, tire-me este colar para eu voltar à minha forma natural. – Disse, apontando para a tira de cabedal que apertou em torno do pescoço.
- E o Ruão? Não o posso deixar aqui!
- Já o libertei, Príncipe Volter, ele juntar-se-á a nós no castelo que…
Porém o mago não conseguiu terminar a frase sob as dores excruciantes que a transformação que estava a sofrer lhe provocava. Os ossos estalaram como vidro à medida que penas negras cobriam o corpo do amanita e um bico lhe substituía os dentes pontiagudos. Em vez de um grito de dor, Hiram largou um crocitar. O corpo dilatou em todas as direcções, em vez de braços, duas enormes asas negras abriram-se e um enorme corvo tomou o lugar do mago. Olhos de Carvalho agarrou-se com força ao pescoço do pássaro que levantava voo e desapareceu pela janela, deixando Vento a gritar maldições ainda paralisado pelo feitiço.



Sangue na arena - Vitor Frazão


  O sangue jorra, misturando-se com a areia da arena, e o público aplaude. Em tempos vivia para momentos como este, agora não consigo ouvi-los sem pensar nas dezenas que protestam às portas da praça.
  Odeiam-me, chamam o que faço um espectáculo bárbaro, cadáver decrépito de costumes primitivos, sem lugar na sociedade moderna. Aos seus olhos não passo de um assassino, um monstro. No outro extremo defendem-me e à arte com os argumentos da tradição e de que são as lides que perpetuam a espécie, que eles não existiriam longe dos aposentos farpados onde os criamos. Não sei. Nunca me preocupei muito com isso. A paixão pela arte, por si só, sempre fora mais que suficiente para me satisfazer, tal como a meu pai, ao pai dele e incontáveis gerações da nossa família, sem carecer de qualquer explicação ou motivo. Agora, apenas sei que nada nessa paixão e no amor dos fãs me faz esquecer o ódio e desprezo dos restantes. Lembro-me acima de tudo dela…. Como é que ela conseguiu abalar todos os pilares do meu mundo, com tão poucas palavras?
  Costumava ser tudo tão simples…
  O sangue escorre-lhe da boca, por entres os lábios secos, atraindo gordas e negras varejeiras. Mesmo com o clamor da multidão ouço-lhes o zumbido, quais agoirentos anjos da Morte. Porque as oiço? Dantes nem dava por elas…
  Tenta erguer-se, mas as forças faltam-lhe e volta a cair na areia manchada de sangue, com o arfar mais pesado do que nunca. Sei que ele não conseguirá pôr-se de pé.
  Avanço para o golpe final, exigido pela multidão, sentindo o intenso cheiro férreo do sangue a ascender da lâmina. Não consigo evitar os olhos castanhos meigos, cheios de agonia e medo. Escolho acreditar que me pedem um final rápido e dou-o. A investida, que se quer certeira e elegante, sem esforço aparente, vibra-me até ao ombro, ao acertar em osso. Só eu noto o quão desajeitado foi o golpe final, pois a morte ofusca os demais.
  A praça explode. Sinto vontade de vomitar, algo que julguei ter abandonado com as primeiras actuações. Fecho o dentes uns contra os outros e engulo o gosto azedo. Mesmo assim levanto o braço e sorrio.
  Em breve o humano será arrastado para fora da arena, a sua carcaça desperdiçada por uma espécie que nem sequer come carne. Na praça não há um único touro sentado. Todos aplaudem, como se diante deles estivesse o mais augusto dos heróis, e eu já não consigo entender porquê…   


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