Castidade - Sara Farinha

Puro é aquele que recusa o vício porque sabe que não lhe resistirá. 

Ignacio Vale nunca se arrependia. Mesmo desconfortável e insatisfeito, continuava a confiar na sua escolha, sexo não era solução. De mãos enfiadas nos seus caracóis pretos, Clara puxava-o para si, beijando-o com fervor. 

A música vibrava para lá da reclusão da pequena alcova. Os sintetizadores pulsavam abafando os gemidos que provinham de dezenas de nichos. Alcovas onde se vendiam corpos como mercadoria barata e onde, pelo preço certo, eram usados sem qualquer restrição. 

Ignacio afastou os lábios e consumiu, com os seus olhos negros, a beleza da mulher que se contorcia à sua frente. Os longos e revoltos cabelos louros, a ruborizada pele leitosa, os olhos azuis-cinza, o corpo firme de curvas bem delineadas, decorado por finas camadas de trama de seda dourada que tudo ofereciam ao olhar. Clara era linda, mas pouco inflamava o seu desejo. 

– Não. – Ele murmurou, afastando a pélvis do meio das pernas dela e erguendo-se sobre a luxuriante Clara. Envergava um dos seus fatos pretos, a farda do trabalho como segurança dum casino de luxo, do qual não abrira nem um botão. 

– O costume. Porquê? – A mulher sussurrou, libertando-o da tesoura que formara com as suas pernas. Pousou os calcanhares sobre o pequeno palco redondo fazendo soar os minúsculos sinos, amarrados nos tornozelos com tiras de seda dourada, e prostrou-se diante dele. 

As desvantagens da sua condição… Aquilo que não podiam ter atraía as pessoas como moscas a peixe podre. Não estaria ali, se pudesse escolher. As tentadoras ofertas não eram nada, quando comparadas com aquilo a que sobrevivera. 

– O que tens para mim? – Ele murmurou, ignorando o espectáculo de carne à sua frente. 

– Mais um beijo, Inigo… – Clara pediu, usando o diminutivo carinhoso com que o baptizara desde que ele começara a recorrer a ela para obter informação sobre o pai. 

– Já tens o teu pagamento. O que descobriste? – Retorquiu, recuando um passo, e sentando-se no sofá redondo que ladeava o pequeno palco. 

– O que é que ela tem que eu não tenho? – A mulher bramiu, rolando até a sua barriga musculada assentar no couro escuro que cobria o palco. Levantou o torso e, de gatas, avançou sobre Ignacio. 

– Clara. – Ele advertiu, enquanto ela colocava as mãos sobre as suas coxas, como uma ponte entre o palco e ele. 

– O ‘Côte d’Azur’. 

Ignacio assentiu com a cabeça. Retirou uma nota do bolso e entalou-a na fita de seda dourada que Clara trazia amarrada ao pescoço. Um beijo e uma nota, um preço modesto, pela pista que o ludibriava há tanto tempo. 

∞ 

Caminhou por ruas secundárias, o familiar breu cortado apenas pela iluminação a óleo que os estabelecimentos comerciais mantinham a funcionar. Enterrou as mãos nos bolsos do comprido casaco negro, baixou o rosto, e avançou pelas ruas decadentes. Enfrentou a decadência em que a maior tempestade solar, de que havia memória, os deixara. Envoltos em escuridão, fome, miséria, e vício, numa nova idade das trevas. 

O mundo era um sítio em que a falta de meios para subsistir atirara milhões para as ruas. Em que a moeda de troca era carne humana, onde os vícios sobreviviam, porque eram a única coisa que valia dinheiro. A única coisa que movimentava a decadente economia mundial. 

Apressou o passo, procurando ignorar as dezenas de rapazes e raparigas que se expunham em cada recanto, trocando o corpo por algumas moedas. Milhões haviam sobrevivido à catástrofe global. Reduzidos a milhares, na última década, todos eles viviam com o mesmo dilema: como sobreviver? 

– Só três moedas, amor. – Uma menina, ainda sem peito num vestido esfarrapado, pedia. Esfregando-se no braço de Ignacio e murmurando quando ele abrandou. – Ou duas moedas pelo meu irmão. 

Um rapaz de dez anos de idade, de cabelos e faces encardidas, escondia-se atrás dum monte de lixo. Ignacio enfiou a mão no bolso, puxando algumas moedas, depositando-as na mão da rapariga, e afastando-se a passos largos. 

Álcool, droga, tabaco, apostas, agiotas, prostituição e pornografia, eram os negócios da sociedade. Contorciam-se-lhe as entranhas ao pensar como a maioria dos miúdos sobrevivia. Relembrava-o porque escolhera a abstinência. O fruto da traição da sua mãe e a morte da sua família, pela indústria mais lucrativa do século, levara-o a fazer o voto. Jurara sobre a campa da sua irmã de doze anos depois dum espectáculo privado e violento a levar. Jurara abstinência num mundo de luxúria e, só esse voto, lhe permitia viver numa sociedade que desprezava. Era impensável perseguir o próprio prazer quando ele significava o sofrimento alheio. Era impossível apreciar aquilo que o moldara com tanta violência. 

∞ 

As colunas de mármore azul ladeavam a enorme porta de vidro rotativo. O ‘Côte D’Azur, uma das melhores casas de serviços da cidade, fornecia tudo o que se pudesse pagar, num ambiente de luxo e requinte. 

Uma fofa carpete verde cobria toda a entrada, retratando florestas luxuriantes, onde faunos, elfos e outras criaturas seduziam mulheres e homens humanos. Dezenas de pessoas, de todo tipo e idade, passeavam pela recepção. Envoltos em enormes túnicas azuis deambulavam, ocupando luxuosos sofás enquanto bebiam e conversavam. 

– Madame Suri? – Ignacio perguntou ao rapaz, atrás do balcão de mármore azul. 

– Não conheço. – Ele retorquiu, acrescentando com um sorriso. – O que lhe podemos oferecer hoje, cavalheiro? 

– O cavalheiro está indeciso. – Uma delicada voz feminina soou pela recepção, calando todos os murmúrios. 

Uma alta mulher, de brilhantes olhos verdes, longo cabelo preto-azulado que tocava a estreita cintura, coberta por pedaços de seda verde-água esvoaçante, olhava-o com um óbvio e ávido interesse. 

– Madame Suri? – Ignacio perguntou. 

– Annabelle Lynn. Suri para pessoas especiais. Acompanhe-me ao escritório. 

Suri guiou-o através da dupla escadaria, em reluzente mármore azul, entrando num opulento escritório. Na espaçosa divisão uma pesada secretária em madeira avermelhada ocupava um dos lados. No centro, uma zona onde dois enormes sofás e duas poltronas em tons esverdeados ladeavam uma mesa de granito com um brilho azulado. A cama de dossel, cujas extremidades eram árvores esculpidas em madeira, incrustadas em contas de lápis-lazuli e turmalinas verdes completava o local de trabalho de Suri. 

– O seu nome? – Ela perguntou, sentando-se num dos opulentos sofás, do mesmo tom das turmalinas incrustadas, indicando com a mão para que ele a imitasse. 

– Ignacio Vale. – Declarou, ocupando uma das poltronas. 

– Vejo que precisa dos meus serviços. – Ela asseverou. 

– Vejo que reconhece o apelido. 

– Responda-me primeiro a uma pergunta… 

Ignacio assentiu, apreciando os estranhos olhos verdes que brilhavam intensamente e o rubor azulado que cobria rosto e cabelos de Suri. 

– Virgem… Como? 

– Como sabe? – Ignacio questionou, enrugando a testa. 

– Responda, por favor. – Suri insistiu 

– Um voto de Castidade. 

– Porque manteria uma coisa dessas? 

– Porque não? – Ele retorquiu. 

– Leshy… – Ela enunciou. Contemplando, de alto a baixo, o corpo de Ignacio. 

– Desculpe? 

– O que tu és, um Leshy, um macho da minha espécie. 

– Espécie? – Ele perguntou, de cenho franzido. 

– Uma criatura da escuridão. Filho de demónio e humana. – Suri acrescentou, com um sorriso apreciativo. 

Ignacio levantou-se da poltrona, parecendo crescer à frente de Suri, enquanto ela contemplava os cabelos encaracolados e a profunda cor negra dos seus olhos que ainda não haviam sofrido a transformação. Um semideus, a prole de um demónio que existia para a libertinagem, recusara sucumbir à luxúria. 

– Proponho um negócio. – Suri murmurou, com uma voz sedutora, erguendo-se com delicadeza do sofá e aproximando-se de Ignacio. 

– Negócio? 

– Tudo o que eu sei. 

– E em troca? – Ignacio murmurou. 

– A tua virgindade. – Ela ronronou, colocando a palma da mão sobre o coração dele. 

– Não está à venda. 

– Então não posso mostrar-te quem és. 

– Fala. – Ele ordenou, agarrando-lhe o pulso e retirando a mão dela. 

– Só posso mostrar… – Suri murmurou, de lábios a escassos milímetros dos dele, envolvendo-o com o seu aroma feminino. 

O sangue de Ignacio ferveu dentro das veias, o desejo arrepiando toda a sua pele, aquecendo-lhe o corpo e arrancando-o do habitual estado de modesta excitação, para uma vontade avassaladora de a possuir. Deu um passo atrás, embatendo com a perna na poltrona que o fez tombar sobre o objecto. 

Aterrou desamparado no tapete de longas cerdas de lã sentindo Suri esparramar-se sobre o seu corpo. Inclinando-se, o longo cabelo dela isolou-os do mundo como uma cortina azulada. O rosto leitoso, tão próximo, coberto de finas veias azuis que pulsavam a cada roçar de corpos. 

– Não! – Ignacio rosnou, empurrando-a pelos ombros e lançando-a pelo quarto, lutando para se levantar e alcançar a porta. 

O som de cascos ecoou pelo quarto, fazendo-o olhar por cima do ombro. Suri era uma magnífica criatura, as suas duas pernas cobertas por um brilhante pêlo verde, os seus pés dois cascos, uma cauda comprida espreitava atrás de si, enquanto o seu torso permanecia o de uma bela mulher, coberto pelos longos cabelos azulados e chispantes olhos verdes. 

– É isto que tu és, um Leshy e sexo faz parte da tua natureza. – Ela declarou com uma gargalhada. – Aceita. Junta-te à tua espécie e vem dominar este mundo. 

– Não. – Ignacio bramiu, abrindo a porta e avançando para o corredor. 

– Só enquanto não cederes… – A voz sedutora de Suri ecoou atrás de si.


2 comentários:

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Gostei, mas teria sido interessante ver um pouco mais de desenvolvimento.

Para além disso, achei alguns adjectivos excessivos e há ali uma zona do texto em que as palavras decadente/decadência se repetem um pouco.

Selenyum disse...

Gostei bastante do setting da história. Se explorado, dava para muito mais.

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