Os Kravyads 6/7 – Sacrifício – Vitor Frazão

     A previsibilidade dos acontecimentos, fez Anath revirar os olhos de tédio, enquanto se encostava à parede, cruzando os braços, e procurava imaginar-se noutro local, fazendo uma lista mental de sítios e actividades mais emocionantes, algo que não era difícil. 



     A cerimónia processava-se sempre da mesma entediante maneira. Após obter a confirmação da qualidade da vítima, Nowak retirava o casaco, que passava à assistente; arregaçava as mangas até aos cotovelos, expondo os antebraços polvilhados com marcas de cortes auto-infligidos no decorrer de outros rituais, e removia os óculos escuros, revelando que não só era cego como tinha as pálpebras cosidas, num padrão em ziguezague. Então, Maria esticava o braço esquerdo, colocando a mão a milímetros do rosto do Mestre, proferia duas palavras e as linhas dos pontos começavam a mexer-se, quais vermes, deslizando para fora da pele e enrolando-se nos dedos da semi-humana. Nessa altura, Nowak abria as pálpebras, revelando que dentro de cada órbita, no lugar do olho, tinha uma minúscula esfera amarela, que à primeira impressão parecia brilhar, mas na verdade sugava luz para a escuridão absoluta, aparentemente sem fundo, que ocupava a sua periferia. 

     Perante esta visão bela e aterrorizante, na qual temia perder-se, caindo para o abismo negro e infinito das órbitas, Luís quase desmaiou, agonizando por não conseguir fechar as próprias pálpebras, sendo forçado a assistir, indefeso com um cordeiro. 

     Pegando numa pequena faca, ferrugenta e ligeiramente curva, com um velho cabo negro em madeira, tirada da mala de viagem pela assistente, Nowak entoou uma lengalenga numa língua que Anath desconhecia, enquanto Maria sacava de uma caneta e de um caderno novinho em folha. Após fazer um pequeno corte no braço, o Doutor repetiu o processo na mão esquerda do humano, misturando o seu sangue com o dele e salpicando a substância na direcção de cada ponto cardeal. Por fim, com um golpe preciso e lento, abriu o ventre da vítima viva, de ilharga a ilharga, fazendo com que as tripas se erguessem, altura em que pousou a faca na bancada e meteu as mãos dentro do mortal, qual obstetra a ajudar um nascimento. 

    Concentrando-se enquanto remexia as entranhas, o Doutor analisou tudo o que percepcionava e ditou-o à assistente, numa língua morta que mais ninguém naquela sala compreendia. Num estado de transe parcial, a fala do adivinho era acelerada e desprovida de pausas, sendo apenas devido à sua vasta experiência e capacidades sobrenaturais que Maria conseguia apontar as palavras proferidas. Ocasionalmente, Nowak puxava órgãos para fora do corpo de Luís e estudava-os, com os seus estranhos olhos, virando-os e revirando-os, detectando neles mistérios inalcançáveis para os comuns mortais, alguns dos quais difíceis de ler mesmo com a sua mente prodigiosa. 

     O Doutor e a assistente encontravam-se imersos no trabalho em mãos, enquanto aos espectadores restava apenas esperar em silêncio. Anath aproveitou para experimentar ligeiras alterações no aspecto, mudando sinais, feições e cortes de cabelo, o que lhe valeu várias chamadas de atenção da mãe, executadas discretamente por medo de perturbar a cerimónia. A verdade era que, embora aborrecida pelo ritual e de mal com a vida, a jovem rakshasi tinha sempre esperança que as visões e conselhos do Doutor lhe concedessem a mudança que tanto desejava, convencendo os pais a partir para um local mais emocionante. Enquanto a filha escondia zelosamente tais sentimentos, os pais eram muito mais transparentes. Kunti esfregava as mãos em antecipação e receio, temendo que aquele fosse o ano em que seria profetizada a sua morte ou qualquer outra desgraça. Isha petiscava de uma malga de alumínio cheia de dedos humanos cozidos, que ocasionalmente oferecia à mulher e filha, ao mesmo tempo que analisava a qualidade dos órgão retirados e repostos por Nowak, procurando imaginar como os cozinharia. 

     Contudo, nenhum deles, rakshasa ou não, reconhecia o sofrimento de Luís, cujos olhos tremiam como se a alma quisesse fugir do corpo. Diante do terror de se ver indefeso, à mercê de um bando de sádicos que pretendiam esquartejá-lo vivo, a mente do humano disparou em dezenas de direcções: implorou a Deus e amaldiçoou-o; fez todas as promessas possíveis e confessou pecados; ponderou que nunca mais veria família e amigos; reconheceu a insignificância dos problemas que o haviam atormentado até então e lutou com todas as forças que tinha para se mover ou simplesmente gritar, sem qualquer resultado. Todavia, esta cornucópia de pensamentos evaporou-se perante a dor, quando a barriga lhe foi aberta e o Doutor começou a remexer-lhe nas entranhas. Infelizmente para o humano, morrer de um golpe no ventre pode levar várias horas de incomensurável sofrimento, não havendo o alívio de um final sujo e rápido ou sequer do torpor criado pelo acto de esvair-se em sangue. Paralisado, mas experienciando cada toque, Luís sentiu os seus gritos de agonia presos na garganta, sem escapatória possível, enlouquecerem-no, enquanto o tormento tomava controlo de cada parte da sua mente, levando-o a desmaiar e a acordar sucessivamente. 

     Após o que lhe apareceu uma eternidade, o veneno que o paralisara começou a perder efeito e Luís conseguiu mexer os dedos e as pálpebras, porém, por essa altura já não tinha forças para lutar, desejando apenas que lhe acabassem com o sofrimento. Eventualmente, o mortal viu o seu pedido atendido, quando os danos provocados aos órgãos, pela desajeitada violação do Doutor, se tornaram demasiado extensos. O fim não foi rápido, nem pacífico, apenas bem-vindo.





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