Os Kravyads 5/7 – Aquilo que o Doutor receitou – Vitor Frazão

     Como era habitual, o convidado e a assistente chegaram exactamente à meia-noite e cinco minutos, sendo recebidos por Anath, que os guiou para a cozinha, enquanto tentava esconder o tédio, perante aquela monótona tradição anual, atrás de uma máscara de cortesia e simpatia, função particularmente difícil, uma vez que a sua beleza e ilusões não afectavam o Doutor. 

      O recém-chegado era um homem pálido, alto e magro, com cerca de cinquenta anos, dedos compridos, feições cadavéricas, nariz aquilino e cabelo branco cortado rente. Vestia um fato e camisa preta, sapatos do mesmo tom e não usava anéis, nem relógio, apenas um par de óculos escuros, com lentes circulares pequenas e armação fechada, sendo completamente impossível ver-lhe os olhos. Era um indivíduo educado, mas sisudo, sorrindo apenas quando as convenções o exigiam. 

      Quanto à assistente, apesar de reflectir a indumentária sóbria e insonsa do mestre, na forma de um casaco largo, camisa simples, saia com bainha abaixo do joelho e sapatos rasos, sendo todas as peças azul-escuras, era muito mais sorridente, embora raramente mostrasse os dentes ao fazê-lo. Não era uma mulher completamente desprovida de encantos, contudo, perante a beleza sobrenatural de Anath, os seus trinta anos, pele morena, olhos azuis, cabelos lisos até aos ombros e feições delicadas, empalideciam. Tal como o mestre não usava jóias ou relógio, trazendo consigo apenas uma pequena mala de viagem. 

      - Saudações, Senhora e Senhor Kravyad – cumprimentou o convidado, em português, ao entrar na cozinha, executando uma fria e quase imperceptível vénia, ao mesmo tempo que tentava esconder o nojo perante o cheiro a carne podre do casal. 

      - Bem-vindo, Doutor Nowak – retribuiu Kunti, na mesma língua, simulando respeito, a um nível que rasava o servilismo. – Creio que arranjámos um belo espécime este ano – afirmou, afagando a cabeça da vítima apavorada. 

      - Veremos – respondeu o convidado. – Maria. 

      Perante o simples comando, a assistente baixou os olhos em concordância, pousou a mala no local mais limpo que conseguiu encontrar dentro da macabra cozinha, cuja decoração aliava sangue, serradura e pedaços de ossos partidos, a electrodomésticos enferrujados e móveis velhos, e esticou a mão para Isha. O rakshasa apressou-se a passar à semi-humana um pires, com o sangue que pouco antes retirara do braço direito da vítima, que enfaixara toscamente com um pano sujo. Recebendo a amostra, cheirou-a antes de molhar a língua nela, bebendo-a qual gato, e degustar o fluido vital por entre estalidos. 

      - Oitenta e cinco porcento – afirmou Maria, pousando o pires vazio num armário empoeirado. Nas raras ocasiões em que falava, um observador atento teria a oportunidade de reparar que a assistente de Nowak possuía minúsculos símbolos entalhados nos dentes e um discurso ligeiramente sibilado. 

      O Doutor lançou um meio sorriso de cortesia ao ouvir a avaliação, vendo-se forçado a reconhecer que a Senhora Kravyad tinha razão, aquele era um bom exemplar, certamente o melhor que os rakshasas arranjaram desde que iniciaram a aliança. Nowak era um fazedor de magia que se dedicava às artes divinatórias. Muitas eram as técnicas que utilizava para praticar o seu ofício, tendo uma predilecção pela hepatomancia, a leitura e interpretação das vísceras de animais sacrificados, particularmente do fígado. Não obstante, para ele nenhuma funcionava com maior eficácia e precisão que a observação dos órgãos de um humano vivo no decorrer de um lento e meticuloso sacrifício anual. O ritual nunca era perfeito, porém, escolhendo a altura em que a Lua estava na posição ideal e procurando a vítima adequada, tentava reduzir ao máximo o número de variáveis que poderiam interferir com a cerimónia. Por isso, fizera um acordo com aquela família de rakshasas, eles arranjavam o humano para o sacrifício e ele utilizava aquilo que aprendia com o ritual para os aconselhar no modo mais seguro e prospero de agirem nos decorrer do ano seguinte. Afinal, quem melhor para descobrir vítimas que uma raça que caçava humanos há milénios. Por outro lado, perante os novos perigos e desafios do mundo ocidental do século XXI, aquelas criaturas ancestrais precisavam de toda a ajuda que conseguissem arranjar…



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