Filho de peixe sabe nadar 3/4 - Carlos Silva


Os anos passaram e o pequeno príncipe cresceu forte e saudável, para admiração dos restantes elfos do reino que esperavam que um meio-sangue ao cuidado de um javardo morresse ainda antes de começar a falar. Não só sobrevivera como se versara nos saberes élficos, integrando-se quanto possível na sociedade, de tal modo que apenas as feições e os olhos castanhos o podiam denunciar. Na escola o seu nome era Olhos de Carvalho, para que nunca ninguém se esquecesse que aquele rapaz era diferente e merecia ser tratado de modo diferente. Olhos de Carvalho sentia-se diferente. Embora tolerassem a sua presença, elogiassem esporadicamente os seus avanços nos estudos, o meio-sangue vivia segregado da vida social, não lhe sendo autorizado a partilhar o espaço de refeições com o seu pai, ou a participar nos eventos sobre o cepo. Nessas noites solitárias, Ruão ensinava-lhe o que estava no coração de um javardo e quão frios e distantes os elfos conseguiam ser uns dos outros e da natureza. De vez em quando, Olhos de Carvalho recebia a visita velada de uma estranha criatura envolta em panos negros e conversas estranhas. À medida que foi crescendo, foi valorizando as parcas visitas, encontrando cada vez maior sentido nas palavras sibiladas pela criatura que não o chamava de Olhos de Carvalho mas de Príncipe Volter.
                Ao contrário dos seus tios da sua idade, o décimo terceiro aniversário, data a partir do qual era considerado adulto, não foi pautado pela alegria da festa que os elfos convocam em honra das crianças que o deixavam de ser. Olhos de Carvalho não sentira a idade a garantir o acesso aos círculos de decisão, mas sim o assinar de uma ordem de expulsão informal do quilongue onde as crias viviam. Não lhe fora sequer oferecido um escravo, como seria de esperar. Nessa noite, ao chegar à casota de Ruão, onde o pai adoptivo preparara um ninho de farrapos para o meio-sangue se aninhar, deixou o choro correr livremente, carpindo a desgraça de nem ter direito a uma casota só para ele.
                A horas incertas da madrugada Ruão acordou Olhos de Carvalho. Vento que Anda chamara-o à sua presença imediatamente. De olhos inchados, o meio-sangue vestiu o melhor fato que tinha e apressou-se a ir de encontro ao seu pai. Este esperava-o na biblioteca, sentado no cadeirão de leitura virado para a janela, folheado distraidamente um livro de poesia. A sua posição era, como sempre, altiva, mas Olhos de Carvalho conseguia sentir-lhe o nervosismo que lhe cerrava os dentes e tremia as mãos. Assim que fez anunciar a sua presença com um leve pigarrear, Vento que Anda chamou-o para mais perto com um aceno. A distância parecia infinita, mas nem por isso o meio-sangue apressou o passo. A cultura élfica exigia que tentasse saber o máximo concedendo o mínimo.
                - Queria dar-te os parabéns, filho – principiou por dizer, transparecendo uma empatia fingida no étimo que lhe dirigira. – Para o bem ou para o mal, és um adulto. Já pensaste no que queres fazer da tua vida?
                Olhos de Carvalho estava agora a escassos metros do cadeirão.
                - Não pensei nisso, meu pai. Aliás, se não fosse Ruão a lembrar-mo, poderia até ter esquecido que este era o meu décimo terceiro aniversário. – O lábio superior do elfo tremeu milimetricamente com a provocação. Um gesto que passaria despercebido para qualquer outra raça, mas não para o meio-sangue. Passou ao ataque. – Porque me chamou aqui a estas horas? Que me quer dizer que mais nenhum dos seus irmãos possa ouvir?
                Vento que Anda censurou-se por subestimar o filho. Os quilongues não tinham portas trancadas sem ser as do exterior, pelo que uma conversa confidencial teria de tomar lugar a horas pouco comuns ou em locais mais esquecidos. O rapaz tinha sido bem educado e estava tão alerta quando era preciso numa sociedade como aquela. Teria de o destabilizar se quisesse atingir o seu objectivo.
- Sabes, filho…Tu só estás vivo por causa de uma dívida que tenho para com o mago que te visita. Se não fosse por ele, nem a tua mãe teria deixado que nasceste. Nunca perguntaste, mas sei que queres saber quem é a tua mãe, não é? Se algum dia fores até ao reino de Lindura, pergunta pela Negreta, a prostituta perneta. – lançou uma gargalhada de escárnio. – Sabes o que mais me alegra? É que apenas prometi ao mago que te mantinha vivo até chegares a adulto.
Ainda não tinha acabado a última palavra já uma espada surgira na sua mão, em direcção ao pescoço do meio-sangue que por pouco se conseguiu desviar. Olhos de Carvalho pensou em fugir, mas Vento que Anda já lhe tinha cortado o caminho para a porta e a janela era demasiado alta. Desembainhou um punhal oculto nas vestes, à boa moda élfica, e empunhou-o em direcção de seu pai. Os golpes de espada caíram sobre si com uma velocidade com que nenhum professor de esgrima o testara, atirando o meio-sangue para o chão ofegante. Com um golpe de rins, voltou à posição vertical, mas nem por isso recuperou vantagem no combate. Saltou por cima de uma mesa de leitura e pontapeou os tomos na direcção do seu atacante que não teve defesa senão encolher-se. Aproveitando o espaço de manobra, Olhos de Carvalho golpeou o ventre do elfo que se desviou a tempo de apenas ficar com uma ferida superficial. Os olhos verdes irradiavam ódio.
- Nunca esperei que fosses tão bom espadachim, Carvalho! – cuspiu para o chão e estalou os dedos. – Mas nem por um momento penses que vou dar ao mago aquilo que ele quer.
Atrás de Olhos de Carvalho surgiu um segundo elfo, que certamente se esgueirara durante a peleja sem ser visto. Nas suas mãos trazia uma besta que largou o seu virote na direcção do meio-sangue, que assistiu com horror um ataque que não podia evitar. Durante esses mesmos instantes, algo de estranho aconteceu a tudo, como se a própria essência do ar tivesse sido corrompida. O virote abrandou a sua velocidade, desfazendo-se em nada, as prateleiras começaram a vibrar, fazendo cair os seus livros e a própria luz solar vacilou a entrar na biblioteca. Vindo de nenhures surgiu Hiram, envolto em negro, de braços esticados e os olhos tão abertos que pareciam ter duplicado o seu grande tamanho. Com um olhar atirou o elfo da besta para longe, fazendo-o deslizar ao longo do corredor que saía da biblioteca como que puxado por uma mão invisível. A trama do mundo voltou a tremer com o movimento das mãos do mago e um projéctil de luz embateu contra Vento que Anda, fazendo-o largar a espada.
- Irei transformar-me para o levar daqui. Agarre-se às minhas costas e conduza-me na direcção das montanhas. Chegando a um castelo, tire-me este colar para eu voltar à minha forma natural. – Disse, apontando para a tira de cabedal que apertou em torno do pescoço.
- E o Ruão? Não o posso deixar aqui!
- Já o libertei, Príncipe Volter, ele juntar-se-á a nós no castelo que…
Porém o mago não conseguiu terminar a frase sob as dores excruciantes que a transformação que estava a sofrer lhe provocava. Os ossos estalaram como vidro à medida que penas negras cobriam o corpo do amanita e um bico lhe substituía os dentes pontiagudos. Em vez de um grito de dor, Hiram largou um crocitar. O corpo dilatou em todas as direcções, em vez de braços, duas enormes asas negras abriram-se e um enorme corvo tomou o lugar do mago. Olhos de Carvalho agarrou-se com força ao pescoço do pássaro que levantava voo e desapareceu pela janela, deixando Vento a gritar maldições ainda paralisado pelo feitiço.



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