Bicho Cidrão –Valor de uma vida 4/5 - Vitor Frazão


Caindo para o vazio, Figueiredo largou instintivamente a espingarda. Diante dos olhos não lhe passou a vida apenas a noção que ia morrer, que seria esborrachado de encontro ao fundo do penhasco, num espectáculo de sangue e carne moída.
Então, tão depressa como começara, a queda parou, com um safanão repentino, deixando-o pendurado pela gola da camisola, braços e pernas suspensas como uma marioneta sem marionetista. Pouco depois ouviu a espingarda estilhaçar-se dezenas de metros abaixo, perdida na escuridão. 
Num misto de gratidão e surpresa olhou para cima, vendo a fronha animalesca do seu salvador.
Na melhor das hipóteses o bicho Cidrão, em toda a sua disforme glória, parecia a tentativa desajeitada, como se feita por um deus em treino, de fundir um cão sarnento, um lobisomem magricela e um homem feio como uma noite de trovões. Apesar de sujo de terra e lama, unhas fendidas imundas e pele quebrada por dezenas de feridas infectadas de pus, o braço que segurava a camisola de Figueiredo podia ser considerado humano, já o resto, coberto com uma camada de pêlo longo, sujo e desgrenhado, nem por isso. Na posição em que estava, não lhe conseguia ver as patas traseiras, imaginando-as como a esquerda, peludas, providas de garras, desproporcionalmente compridas e, apesar do aspecto magricela, fortes o suficientes para impedir ambos de caírem do penhasco. O focinho canídeo era curto e um pouco achatado, as orelhas compridas e da boca pendia-lhe uma longa e deselegante língua, assim como generosa quantidade de baba.
A criatura falou, todavia, entre a surpresa perante tal capacidade e a extensão da desajeitada língua, Figueiredo não conseguiu entender o que ele disse, de início.
- Agarra-te! – repetiu o bicho, quase cortando a língua com as afiados presas a cada movimento da boca.    
O jovem Obliterador hesitou por momentos, porém, o instinto de sobrevivência depressa se sobrepôs à repugnância e agarrou com ambas as mãos o braço que o impedia de morrer. Quando estivesse de volta a solo firme dar-se-ia ao trabalho de pensar no que fazer, naquele momento queria apenas salvar o couro.
Fincando com mais força a mão animalesca na rocha e flectindo as patas, o bicho Cidrão tentou puxar o humano para segurança, mas o esforço alargou-lhe a ferida no ombro, provocada pelo tiro de Silva. Novo safanão e Figueiredo voltou a ser baixado de repente, tendo o Oculto de usar todas as forças que lhe restavam para evitar largá-lo.   
O jovem Obliterador, com o coração a bater como se quisesse fugir-lhe do peito, olhou para cima, para os olhos âmbar do bicho, iluminados pelo luar, vendo neles genuína preocupação e ternura. Pareciam dizer-lhe que, apesar de tudo e mesmo com risco da própria vida, não o abandonaria e que a mera ideia de o fazer aterrorizava-o. Não entendia o porquê daquela generosidade, deu apenas por si a confiar no inimigo. Talvez aquela situação fosse simplesmente demasiado familiar para a criatura… 
Arfando como um desalmado, o bicho Cidrão concentrou todas as forças e voltou a puxá-lo. Desta feita, Figueiredo ascendeu muito mais depressa e já se via a salvo, quando uma explosão de sangue lhe encharcou a cara, cegando-o. O corpo do bicho ficou frouxo e o Obliterador voltou a cair, arrastando consigo o bom samaritano.
- Merda, Marisa! Para que é que foi isso? – protestou Silva, correndo para a beira do penhasco, caçadeira em punho, para tentar ver o que acontecera ao companheiro. – Podias ter esperado que ele o içasse.
- Ele era demasiado rápido, não podia arriscar – justificou a líder, expulsando o cartucho, sem revelar qualquer sentimento nas feições morenas e redondas, além de alívio por ter conseguido abater a aberração antes de ela se desviar. – Tive uma oportunidade e aproveitei, o puto teria feito o mesmo. Qualquer bom soldado teria.
- Ele tinha um nome – atirou, voltando-se para a ela, com amargura e desprezo, os seus dedos ficando brancos em redor da caçadeira. – Pedro Figueiredo. Se consegues viver com o que fizeste sem remorsos, o mínimo é lembrares-te disso.
- Não te armes em moralista comigo, Silva – retaliou ela, contundentemente fria, como se gelo lhe corresse nas veias. – Fazemos o que devemos. O resto não importa. Nenhum indivíduo é mais importante que a missão. O puto… o Figueiredo sabia isso. Esperava o mesmo de ti. De qualquer modo, o sacrifício dele não foi em vão. Menos um Oculto significa um mundo mais seguro.
“Sim conseguimos eliminar um monstro cujo único historial fora assustar uma dúzia de cães e aldeões” pensou, esforçando-se para se conter de enfiar uma chapada na fronha da superior. “Não esquecendo que cometeu o acto hediondo de tentar salvar alguém que o queria matar. Sem dúvida, o mundo pode respirar de alívio e tudo pelo preço, mais que justo, de apenas a vida de um jovem Obliterador. Uma pechincha.”
            Silva nascera no seio da organização, entendia bem a importância da causa e os sacrifícios que se esperava que fizessem por ela, contudo, não os aceitava de ânimo leve. Missão ou não, Obliterador ou civil, uma vida humana era uma vida humana, cabendo apenas ao seu portador decidir o que fazer com ela. Marisa não tinha o direito de roubar a escolha a Pedro, não num cenário daqueles, não contra um Oculto tão insignificante. 
- Vamos – ordenou a sargento, descendo a encosta sem olhar para trás – temos de confirmar que morreu.
- E resgatar o corpo.
- Sim, claro.
- O de Figueiredo também – cuspiu Silva, tendo a certeza que Marisa já se esquecera do Obliterador que assassinara, pensando apenas no cadáver do Oculto. Ela nem os via, cega pela causa.




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